sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Os defeitos à luz da HD

Depois de feitas as necessárias considerações sobre o caso do vigia, gostaria de tratar o contrato dele com a vizinhança como um negócio jurídico. Tentaremos ver se o negócio é nulo, ou pelo menos anulável, em método que se assemelha ao hipotético-dedutivo nas tentativas de falseamento.

Será que era possível ao velhote realizar a proteção do quarteirão? O Código Civil invalida o negócio jurídico em caso de coisa impossível de se fazer ou em cargos impossíveis. Ora, meu bairro não é o que a imprensa chama de local de alta periculosidade. O crime no local ainda é bebê, só um pequeno magote de malandros advindos das favelas vizinhas. Apesar de tudo que já foi alegado, quero crer que no meu bairro o canela-seca daria um jeito. Partindo da possibilidade de cumprimento daquilo que estava acertado, iremos analisar os possíveis defeitos do negócio jurídico.

Houve erro? Haveria se na hora da escritura trocassem o nome do dito cujo. Em vez do nome que a mãe lhe dera, Antônio Cosme Feijão, colocassem uma gracinha do tipo Antônio Cospe-Feijão. Na hora do vamos ver, o velho alegaria que não era ele, Seu Cosme, o responsável pela segurança da área. “Que nada, moço, só estou passando por aqui, quem vigia a área é um tal de Cospe-Feijão”. Se, não obstante sua negação, o idoso pudesse ser identificado pelo contexto e pelas circunstâncias como o vigilante, cairia no artigo 142 do Código já citado. Também poderia vir da outra parte: não era 600 que constava, mas 009 reais. O escrivão lendo ao contrário confundiu a cabeça, algo do tipo, colocou ao contrário. Ao fim do mês, sem dúvidas, o “nosso herói” ia dizer o que citei em outro texto – “quero meus 600”. Isso só não prejudicaria a validade do negócio jurídico caso os moradores se oferecem para executar o pagamento na conformidade da vontade real do manifestante, conforme o artigo 144. Como nada disso ocorreu, não houve erro.

Houve dolo? Caso Seu Cosme houvesse omitido a ausência não só do canela-seca, mas também do mortal cassetete; e como se não bastasse, omitido também a deficiência visual não corrigida por óculos e a dificuldade de locomoção por causa da idade – haveria. A vizinhança também poderia, por sua vez, omitir do vigia a fama do bairro: dominado pelo tráfico com meliantes armados até as gengivas. Assinando o contrato, ele assinava a própria certidão de óbito e não sabia. Pior seria se ambas as coisas ocorressem, daí o coitado não poderia nem alegar o dolo para anular o negócio em poucos dias seria notícia de jornal. Já falei do canela-seca e da infância criminal do lugar, concluindo que não houve dolo.

E coação? O vigilante não seria doido de amostrar o 38 de casa em casa exigindo que a vizinhança pagasse os 10 contos, cada casa. E será que Marcelo deixaria a sogra morrer pra resguardar a própria vida? Lembremos que a senhora é parenta de primeiro grau por afinidade do meu vizinho, parentesco esse que não se extingue nem com a dissolução do casamento. Se os moradores jurassem a Seu Cosme que, se ele não fizesse a segurança, colocariam-no na Justiça, nem seria, pois não se considera coação a ameaça do exercício normal de um direito. Sabemos – não houve.

E será que foi num estado de perigo? Seria se a vizinhança assustada pelas mortes que estavam ocorrendo cada vez mais freqüente – Marcelo ainda em luto pela inesperada morte da filha antes mesmo da esperada morte da sogra – aceitasse o triplo do preço, 1800 reais no bolso do velhote metido a leão de chácara. Uma fortuna. Ou então o pobre-diabo, com a filha doente, desempregado, aceitasse a bagatela dos 9 reais, dessa vez sem erro do escrivão. Ou até um pouco mais, porém que não lhe desse condições de sobrevivência. De fato, não foi.

Ocorreu lesão? Ocorreria nos casos dos 1800 e dos 9, mas não por causas das filhas, mas sim por inexperiência. O vigia nunca havia vigiado, nem sabia quanto cobrar, aceitou a merreca. Ou bairro nunca tinha pagado vigia, o que de fato era verdade, mas como o bolso é a parte mais sensível do corpo humano, não meteriam quase dois mil no do velho assim tão facilmente.

E fraude contra credores? A Constituição só prevê punição para dívidas no caso de obrigação alimentícia ou do depositário infiel. Eu não queria colocar Antônio Cosme Feijão como credor quirografário nem o maldito Marcelo como um devedor insolvente para não complicar, mas se este não pagasse a dívida e começasse a passar os bens para o nome da sogra para continuar sem pagar, possivelmente o defeito aconteceria. Mas não aconteceu.

Após essa longa e chata análise, concluo que não é anulável, mas afirmo isso sem muita certeza pela impossibilidade de se olhar o fato por todos os ângulos. E, para caracterizar a hipotética dedução, deixo em aberto o tema para que possa ser aprofundado em pesquisas futuras.

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